sexta-feira, 3 de maio de 2019

venuscidade

vênus

era assim que eu era quando ainda planeta
guardiã do meu ser mais profundo
aquele que por um tempo eu fiquei chamando de deus

a vida sempre cobra da gente
nem que seja em lembrança
o dia de incendiar e queimar tudo
tudo em cinzas
tudo no mar

e esse cheiro de queimado me arde o nariz
e inspiro seco cinza pó de fumaça
troveja lá fora
e minha janela ainda aberta
pinga aqui dentro
e bem dentro aqui de mim
e eu gosto que chova
que molhe
que suba esse cheiro de terra
e a terra da minha plantinha mata a sede
ou embebeda
as vezes se afoga
mas o sábio tempo sabe a hora de molhar e secar
e porque não molhar e secar e misturar e fazer lama barro terra firme?
vaso de honra
faça o que você quiser de você
mas guarde o seu ser
o seu self
o seu mais profundo
aquilo que te torna
uma deusa
um deus!

eu sempre pensei no oleiro como sendo um cara
barbudo com braços e mãos grandes e fortes
e eu nas mãos dele
ele me moldando
a sensação não me era tão ruim
mas eu
forjada por ele
me via como o meu pai meu irmão meu pastor me viam
e aquilo não era eu
quando decidi que eu mesma seria a minha oleira
eu mesma escolho e decido e digo sobre quem eu sou
ninguém mais!
nem igreja nem forças armadas
nem as feministas empoderadas

não vão me apontar o dedo na cara!

eu mesma me toco
me acaricio me deleito em mim mesma
faço salmos de amor pra mim
pra minha deusa que habita aqui
e quando a vejo nos olhos do meu amor
meu amor se faz real em mim
como a abundancia da agua na lua
e tudo flui como rios de água viva
e não é só metáfora
eu sinto mesmo o meu corpo escorrendo como um rio
ora iê iê ô

um pedaço de mim tá sempre morrendo

quando são células do ouvido
um zumbido
quando são as unhas os pelos a agua
joga fora
corta
derrama
e tudo vai e renasce de novo
e eu com quase quarenta
ainda tanto gozo
tudo renasce o tempo todo
uma casa de palha ou de madeira ou de tijolo
colorida
coralina
dandara

ipê

um ipê plantado ao pé do portão
e claro que tem magia nisso
deslugar pra mim e lugar pra um tanto de gente
é que história só da pra ser dita pra quem quer ouvir

...

é que todo mundo tinha tanta coisa pra falar
todo mundo tem tanta coisa pra falar
eu tenho tanta coisa...

um silêncio
foi com o silêncio
é com o silêncio que eu tenho que estar
aquele instante que eu não sei o que dizer
e como isso me agonia e me apavora
não saber o que dizer
uma flecha só
eu sei
mas é preciso o momento e o alvo certo
venus arqueira
vento forte
venta do norte pra cá
pra cá pra essas terras
onde toda mulher branca é sinhá
desde aquela de saia plissada elogiada
que eu odiava
àquela do vestidinho de cetim engomado com laço
que tinha que cantar música em formatura da quarta série
na escola do evangelho quadrangular
eu não queria cantar com aquele vestido
eu não queria cantar
queria que a minha amiga cantasse e eu queria tocar pra ela
a menina que era da igreja do véu e tinha a voz bonita

tocar era o meu jeito honesto de ser

cantar eu não sabia
eu não sabia aquilo de ser tão feminina
feito a vaninha ou a eula paula
mãe da araújo de hoje
       [minha chará]

e era tão bom quando tinha alguém pra cantar
uma prima
uma amiga
um amigo

mas...

minha voz começou
a clamar
a me chamar
[que nem a voz que clama no deserto
prenunciando o cristo]

quem é você? fala! quem é você?
uma racista que prostitui gente?
é isso mesmo daniela?
adiantou fingir
que só seu irmão era?
que só seu irmão erra?
e o peso que há no centro de uma balança
nem gente forte tem que carregar

um machado
cortando desde a raiz caô
cortante rigida lamina
cavando a justiça de onde menos se pode esperar
a raiz exposta
ferida machucada
sem seiva pra se alimentar

replantada em terra viva
se rende aos desejos da terra
e se oferece a ela em sacrifício eterno
pela redenção de nada mais além de sua alma
sua alma vagante que nunca se cansa de procurar
esse destino tão antigo e ainda tão distante no tempo

meu caminho
minha jornada
faço meio louca e desvairada
sem saber o que vem pela frente
segurando as redeas
dos meus dois lados
             [dois cavalos bravos que sempre brigam em bifurcações]
e só vai entortar a espada se tentar furar a couraça
vai com a mão mesmo e deixa surgir o marte guerreiro leão
que de tanto medo despertou em grande coragem
a coragem paciente do touro ferido curador