segunda-feira, 20 de abril de 2009

AP 320

De onde ele estava só podia ver os arcos indo e vindo na sua frente seguindo a transitoriedade das notas afinadas que surgiam nos cellos, violas e violinos. Aquele som o absorvia e o transportava para um tempo que ele pouco desfrutara. O tempo em que eles ainda estavam juntos. Os três juntos, com sonhos desencontrados e ministérios que os dividiam, imperceptivelmente, a cada dia.
Augusto Belmiro e Alexandra haviam se encontrado e se apaixonado já fazia alguns anos. Um casamento fundado sobre uma paixão desenfreada, presenteou-os, depois de 4 anos, com a doce Alicia que só os ajudou a perceber o quanto seu tempo e seus limites estavam se esticando ao ponto de não se encontrarem mais dentro daquele minúsculo apartamento do 3º andar. Desde que Iago, irmão de Augusto viera morar com eles, suas vidas mudaram e o apartamento, de tão pequeno que ficou, perdeu todos os encantos que seduziram Alexandra na primeira vez que o viu. A pequena placa de ferro pintada de preto com bordas prateadas e o número 320, também prateado, indicando o número do apartamento, já estava com aspecto velho e toda descascada. A pontinha esquerda estava quebrada, mas o número permanecia ali, intacto: 320 – o número que Alicia pronunciava com tanto prazer ao fazer referência de seu novo endereço às amigas.
Não se pode negar que os momentos bons foram presentes. As persianas, o tapete, os armários da cozinha, a poltrona, tudo com cheirinho de novo. Os sonhos, os planos de viagens, o planejamento familiar, tudo ainda plastificado, vinham à memória de Augusto com o saudosismo de algo que nunca fora experimentado. Essas lembranças lhe causavam aquela dorzinha no peito que chega a ser boa. Aquele aperto que faz o hálito aquecer.
Essa dor surgia em doses suaves ou roucas, coloridas ou enegrecidas, dependendo da lembrança, mas eram sempre dores. A presença de Iago no apartamento minimizou o lar do casal para apenas o 320 do Ed. Milagreiro. Dois anos depois de sua chegada, nasceu a pequena Alicia, que causou decepção em Augusto por não perceber nenhum gesto de empolgação de Alexandre ante a maternidade. Os limites se evidenciaram ainda mais. A volta pra casa já não precisava ser às 10hs como de costume. As conversas dos amigos, por vezes eram mais agradáveis que o convívio no lar ou no AP 320. A inquietação de Alicia nos primeiros meses refletia em Alexandra uma serenidade incompreendida pelo marido. Seu olhar triste e suas canções de ninar - nunca cantadas - faziam-no pensar que a filha não lhe era bem vinda, mas os cuidados que a mãe lhe depositava e o carinho mudo, mas meigo, opunha-se às suas razões. Para fugir do medo da culpa, preferiu se refugiar em si mesmo, longe das observações da esposa e das carências da filha... Nem se lembrou que o irmão fazia parte do AP 320.
Naquele dia ele voltou do ensaio mais cedo. Dia chuvoso prenunciando a primavera. As folhas começavam a se espalhar pelas ruas e a velha estação parecia se despedir com aquela chuvinha fina e longa. A estação do metrô não estava tão tumultuada como de costume e naquele dia Augusto conseguiu um assento pra ele e para o Cello. Observando as gotas da chuva escorregarem pelo vidro do trem, foi interrompido por um garoto que sorriu e lhe entregou um folheto, e Augusto, por respeito ao gentil garoto, deu uma breve olhada e observou a imagem de um homem de boa postura com uma garotinha suspensa em seus braços. Sem dobrar, guardou o folheto e deu uma olhada pra trás para ver se alguém percebera sua inquietação diante da foto. Será que alguém ou ele mesmo o perdoaria por nunca ter ido procurá-las? Refugiou aqueles pensamentos em um canto escondido do coração, onde ninguém pudesse ver, nem tocar... Depois pensava nisso!
Andou, da estação do metrô ao prédio, passou pela padaria e continuou a caminhar com o café, o cello e os pães comprados. Rotineiramente, retirou as correspondências da caixa do correio e ao olhá-las uma a uma, sentiu o coração acelerar quando viu aquela letra. É como se o coração soubesse antes dele que aquela carta estaria ali. Novamente, olhou para os lados e só aí se deu conta do papel ridículo que fazia ao fugir assim. O que ela queria? Desaparece sem explicações e agora, uma carta? Onde ela estaria? Será que tinha acontecido alguma coisa? Desde a fuga de Alexandra, aquela carta foi o primeiro sinal de vida dado por ela. Endereçado ao Ap 320 do ed. Milagreiro, o envelope continha duas folhas de caderno brochura grande, que causaram uma emoção estranha em Augusto. Uma mistura de angústia, raiva, alegria e esperança. Começou a ler palavras frias e cheias de insinuações, mas em cada uma delas sentia afeto. Com o coração gelado, sentou-se ali mesmo, no vão do prédio, sob a caixa do cello, e começou a ler ansioso. A carta mencionava boas lembranças do AP 320 como ela carinhosamente se referia ao lar. Com afeto ela o fez relembrar das folhas molhadas do princípio da primavera. Ela foi quem chamou sua atenção para aquelas malditas folhas. As frases eram curtas, simples, secas, mas afetuosas. O último aniversário de casamento esquecido por ele. Ele sabia que desde aquele dia Alexandra passou a se comportar diferente...Frescuras e exageros de mulher...
“O quê?????” Augusto sentiu um fortíssimo golpe nas costelas.
“Bêbada? Como assim?” Dá um soco na parede e com os olhos arregalados e a face vermelha continua lendo a carta.

Alexandra revela que na noite que ela lhe prepara o jantar para comemorarem o 4º aniversário de casamento – noite em que ele chega apressado, toma banho correndo, se arruma e sai para uma apresentação extra com os amigos, sem sequer dar-lhe um beijo – ela bebe mais por indignação e vingança do que por intenções em esquecer.
Iago chega cedo e a acompanha na garrafa de vinho. Ela já sonolenta se deixa levar por uma conversa sem pé nem cabeça e quando se dá conta de si, está com o hálito amargo misturado com cheiro de maconha de Iago em cima dela. Tenta resistir, mas a guerra se confunde com a embriaguez e seus gritos sufocados se calam após alguns minutos, quando, inundada por lágrimas quentes, sente queimar entre suas pernas o líquido carregando a semente que lhe trouxe Alicia....
Augusto podia sentir os escombros de um mundo inteiro caindo sobre ele. A realidade estava sendo muito cruel. Não sabia se preferia a verdade ou a llusão. Fora muito injusto com Alexandra e aquele turbilhão de emoções fez-lo pensar que não suportaria. Lembrou do 38 que ficava guardado na parte superior do armário. Uma arma que nunca havia sido usada agora poderia ter sua utilidade.
Sobe as escadas levado às pressas por uma raiva incontida que precisava ser posta pra fora. Sabia que Iago estaria lá e não poderia olhar em seus olhos se não fosse para matá-lo. Já estava decidido! Os dois não poderiam sobreviver mais ao mesmo mundo.
Bate a porta furiosamente. Iago, ante de abrir a porta completamente é derrubado pela fúria do irmão que se joga em cima dele e começa a esmurrá-lo. Entre os grunhidos, os gritos desesperados, saíam-lhe da boca palavras como “Foi mal cara”, “eu sempre quis ser como você”, “você nunca entendeu nada” e a medida que essas palavras iam sendo ouvidas por Augusto sua raiva aumentava. Raiva de si mesmo, raiva do destino, raiva do mundo... O grito sufocado explode entre lágrimas e golfadas de ódio. Joga o irmão para fora do AP aos pontapés e se joga no chão num ato de desconsolo desesperado. Levanta-se, dirige-se ao quarto, abre a última porta do armário, tateia o fundo do armário até sentir o frio metal encostar em seus dedos. Pega a arma e com passos pesados volta à sala. Senta-se, deixa a arma entre seus dedos e a mesa. Olha pra frente e vê uma imagem desfigurada à sua frente olhando pra ele. Descabelado, ensangüentado ele se observa pelo reflexo do espelho que parecia lhe dizer todas as verdades da sua vida. Verdades que ele nunca quis ouvir. Levanta a arma até a altura da cabeça e observa a imagem de um homem que ele nunca quis enxergar com uma arma apontada pra cabeça. Subitamente ele observa que, pregado ao espelho tem um papelzinho riscado por giz de cera. Descompõe-se e procura algo nos bolsos. Retira um papel semelhante do bolso, compara os dois e lê: “eis que estou à porta e bato... se alguém ouvir a minha voz, eu entrarei, cearei com ele e ele comigo.” AP 3:20. Observa a referência e instantaneamente ouve batidas fortes na porta.